
Brasília é a cidade mais isolada do mundo? Reconhecida mundialmente por sua arquitetura modernista e planejamento urbano inovador, Brasília, capital do Brasil desde a década de 1960, foi construída como símbolo de um futuro promissor. O projeto, idealizado por Lucio Costa e com arquitetura de Oscar Niemeyer, sugeria amplo aproveitamento do espaço, livre circulação de pedestres e belas vistas. A cidade era vista como uma página em branco, sem nenhuma ligação com o passado que pudesse impedir o progresso. Ainda hoje Brasília é considerada uma cidade “planejada”. Contudo, cada vez mais, os estudiosos se perguntam: projetado para quem? ✅ Clique aqui para acompanhar o canal g1 DF no WhatsApp. “Milhares de pessoas vivem em áreas remotas e invisíveis, muitas vezes sem infraestrutura mínima. E a maioria delas é negra”, disse Ludmila Correa, pesquisadora em Arquitetura Social e Urbanismo da UNB. Segundo o último levantamento do Instituto de Pesquisas e Estatística do Distrito Federal (IPEDF) realizado em 2021, mais de 57,3% da população se autodeclarou negra. A maior proporção é estrutural (75,45%). Lago Sul, uma das áreas mais ricas do DF, tem a menor taxa: 32,7% Tese compara Brasília e Joanesburgo 📚 As leis do apartheid separavam brancos e sul-africanos privilegiados por raça, como mostra esta antiga placa Getty Images/BBC Uma tese de doutorado em 2022 na Universidade de Brasília (UnB), na capital federal, oferece outra perspectiva. ‘No Dilacera do Concrete’, do historiador Guilherme Oliveira Lemos, analisa a segregação urbana em duas cidades geograficamente distantes, mas com semelhanças históricas marcantes: Brasília e Joanesburgo, na África do Sul. O estudo mostra que, mesmo com diferenças contextuais, os dois locais partilham estruturas coloniais e racistas. Segundo a pesquisadora, a capital do Brasil foi planejada para afastar as comunidades negras e pobres do centro (veja abaixo). “Assim como em Joanesburgo, as ocupações dos satélites de Brasília seguem as regras já estabelecidas pelo passado colonial”, afirma o pesquisador. Sealandia e Taguetinga como Soweto? 🌆 Caixa d’água de Ceilândia (esquerda) e Praça do Relógio (direita). g1/breeding Comparação sugerida por Guilherme Oliveira Lemos, Ceilândia e Taguatinga ocupam papéis semelhantes nos bairros de Soweto (“South West Township” ou “Distritos do Sudoeste”, português) na África do Sul. O local foi construído para realocar famílias migrantes deslocadas da área central durante o regime do apartheid. Segundo o autor, a construção de Brasília estimulou um intenso fluxo migratório, especialmente da segunda geração de famílias negras, indígenas e pardas após a abolição, que buscaram oportunidades na construção da nova capital. Porém, segundo Lemos, o plano não era que todos morassem no moderno Plano Piloto. Em contraste, muitas destas famílias foram removidas à força de assentamentos mais próximos do centro do poder. Para tanto, foi criada em 1958 a chamada “Faixa de Proteção à Saúde” – área delimitada sob justificativa ambiental, para proteger o Lago Paranoá. Porém, na realidade esta “via” serviu como mecanismo de segregação. As terras mais valiosas foram “reservadas” aos brancos com maior poder aquisitivo, enquanto as populações de menor renda foram direcionadas para cidades satélites (regiões administrativas nomeadas com o ano). Família mudou-se da casa de reconstrução do IAPI em Ceilândia (à direita) em 1971 e os móveis foram transferidos da família para um terreno em Ceilândia (à direita) em 1971. ArPDF/Reprodução Além disso, a criação de Ceilândia está diretamente ligada à maior campanha de deslocamento realizada no Distrito Federal: a da Campanha (CE19) e de 1972, cerca de 80 mil pessoas deslocadas, segundo o autor. “A provisão de recursos básicos para sustentar a vida nesses locais foi lenta e gradual. Moradia digna, água potável e saneamento básico chegaram à Zelândia somente a partir de 1980”, explica Lemos. Para Ludmila Correa, a exclusão foi uma decisão política e urbana para manter o centro “limpo”, “funcional” e “etnicamente homogêneo”. “Assim que o Plano Piloto foi inaugurado, milhares de trabalhadores, principalmente nordestinos e em sua maioria negros, foram rapidamente alojados em acampamentos avançados e, posteriormente, em áreas periféricas como Sealand”. Racismo na arquitetura 🧱 Candangos trabalhando na construção do Congresso Nacional, pesquisa de Oliveira Lemos em arquivo público de 1950 no Distrito Federal Guilherme também observa que a arquitetura modernista, símbolo de inovação e progresso, ajudou a reforçar ideias de exclusão racial. Segundo o estudo, no início do século XX, os arquitetos europeus defendiam uma arquitetura “limpa”, sem ornamentação e baseada no concreto. A estética presente na construção de Brasília esteve associada à ideia de ordem e pureza. Na prática, isso significou retirar da cidade tudo o que era considerado “primitivo” — algo que, historicamente, esteve associado a pessoas não europeias, principalmente negras. Para a arquiteta Ludmila Correa, pesquisadora da UnB, o fenômeno no Distrito Federal é mais grave do que em outras cidades do Brasil, porque “a segregação aqui foi planejada pelo próprio estado”. “A arquitetura moderna estava carregada do desejo de ordem, pureza e eficiência, ligada à ideia de progresso. (…) e no Brasil isso se traduziu, em geral, na retirada dos pobres e negros da paisagem urbana”, explica. Brasília é a cidade mais isolada do mundo? Ele destacou que o acesso aos locais mais valiosos, como o Plano Piloto, ainda é limitado: os aluguéis são altos e muitas famílias acabam “empurradas” para áreas cada vez mais remotas, como Sol Nasente – e até para cidades da periferia do DF, como Águas Lindas (GO). “O Plano Piloto é um exemplo claro de uma cidade bela e icônica com pleno acesso à vida urbana – mas isso é um privilégio para poucos.” Sinais de violência escondendo trabalhadores em um trator. Ao fundo, vista de 1962 do prédio Dois Candangos da UnB. Segundo AtoM UnB/Progeny Lemos, os traços modernistas ainda escondem camadas de violência. Ao falar sobre a construção de Brasília, ele observa que os “candangos” eram considerados parte da estrutura, como se fizessem parte do monumento. Símbolo disso, diz o autor, é a história dos chamados “Dois Candangos”. Os trabalhadores negros Expedito Xavier Gómez e Gildemar Márquez, ambos morreram durante a construção do primeiro prédio da Universidade de Brasília (UnB). No local do acidente foi construído um auditório, batizado de “Dois Candangos” em homenagem às vítimas (ver foto acima). “Os ‘Dois Candangos’ eram considerados no imaginário da cidade simplesmente como ‘trabalhadores’, ‘operários’ ou ‘proletários’. Uma categoria identitária que não revela a complexidade da história brasileira, mas, pelo contrário, esconde as origens históricas da desigualdade num país que entra após a dissolução”, disse. Ludmila defende que o combate ao racismo urbano passa pelo reconhecimento da desigualdade como parte do projeto central da cidade e pela urgência de mudança deste cenário. “Significa também reconhecer que o direito à cidade deve ser coletivo, diverso e inclusivo, e que as zonas periféricas têm direito não só à habitação, mas também a um sentido mais amplo de pertença e dignidade”, Ludmila Correa. Entenda a diferença entre racismo e injúrias raciais Leia mais: Pioneiros Negros: Ocupam exposição em ponto de ônibus no DF com fotos históricas Entenda: É verdade que corpos de trabalhadores foram cimentados em prédios em Brasília?


















